A meritocracia é um mito inventado pelos ricos

Por Nathan Robinson

Publicado originalmente no Guardian, em 14/03/2019

O escândalo das admissões nas universidades americanas é fascinante, se não surpreendente. Mais de 30 pais ricos foram acusados criminalmente por um esquema em que alegadamente pagaram a uma empresa grandes somas de dinheiro para levar os seus filhos às melhores universidades. A duplicidade envolvida era extrema: tudo, desde pagar a funcionários universitários até inventar dificuldades de aprendizagem para facilitar a fraude em testes padronizados. Um pai até falsificou uma foto do salto com vara de seu filho para convencer os oficiais de admissão de que o menino era um atleta estrela.

Não é segredo que as pessoas ricas farão quase tudo para que seus filhos entrem em boas escolas. Mas este escândalo só começa a revelar as mentiras que sustentam a idéia americana de meritocracia. William “Rick” Singer, que admitiu ter orquestrado o esquema, explicou que há três maneiras pelas quais um estudante pode entrar na faculdade de sua escolha: “Há uma porta da frente que é você entrar por conta própria. A porta das traseiras é através do avanço institucional, que é dez vezes mais dinheiro. E eu criei essa porta lateral”. A “porta lateral” a que ele se refere é o verdadeiro crime, literalmente pagar subornos e falsificar resultados de testes. É impossível saber o quão comum isso é, mas há razões para suspeitar que é relativamente raro. Por quê? Porque para a maior parte, os ricos não precisam pagar subornos ilegais. Eles já podem pagar perfeitamente os legais.

Em seu livro de 2006, The Price of Admission: How America’s Ruling Class Buys Its Way into Elite Colleges, Daniel Golden expõe a forma como as principais escolas favorecem os doadores e os filhos de ex-alunos. Um oficial de admissões de Duke lembra-se de ter recebido uma caixa de inscrições que ela tinha a intenção de rejeitar, mas que lhe foram devolvidas para reconsideração “especiais”. Nos casos em que se espera que os pais façam doações muito grandes após a admissão de um aluno, o candidato pode ser descrita como um candidato de “desenvolvimento institucional” – deixá-los entrar ajudaria a desenvolver a instituição. Todos já estão familiarizados com a forma como a família Kushner comprou um lugar para o pequeno Jared em Harvard. Foram necessários apenas 2,5 milhões de dólares para convencer a escola de que Jared era material de Harvard.

A desigualdade vai muito mais fundo do que isso, no entanto. Não são apenas as doações que colocam os ricos à frente. As crianças do 1% mais rico (e dos 5% mais ricos, e dos 20% mais ricos) passaram toda a vida acumulando vantagens sobre suas contrapartes na base. Mesmo na primeira série, as diferenças podem ser acentuadas: compare o ambiente de aprendizagem em uma das escolas públicas primárias de Detroit, em ruínas, com o de uma escola particular de ensino fundamental, que custa dezenas de milhares de dólares por ano. Há escolas de ensino médio, como a Phillips Academy em Andover, Massachusetts, que têm dotações de bilhões de dólares. Em todo o país, o nível de educação que você recebe depende de quanto dinheiro seus pais têm.

Mesmo que igualássemos o financiamento das escolas públicas e abolíssemos as escolas privadas, algumas crianças seriam muito mais iguais do que outras. 2,5 milhões de crianças nos Estados Unidos não tem sequer onde morar neste país. A situação de vida caótica que vem com a pobreza torna muito, muito mais difícil ter sucesso. Isto significa que mesmo aqueles que passam pela “porta da frente” de Singer não “entraram por conta própria”. Eles entraram em parte porque tiveram a boa sorte de ter uma vida em casa propícia ao seu sucesso.

As pessoas costumam falar de “igualdade de oportunidades” como a aspiração americana. Mas ter algo próximo da igualdade de oportunidades exigiria uma reengenharia radical da sociedade de cima para baixo. Enquanto houver grandes desigualdades de riqueza, haverá diferenças colossais nas oportunidades que as crianças têm. Não importa quais critérios de admissão sejam estabelecidos, as crianças ricas terão a vantagem. Se os prifissionais de admissão se concentrarem nos resultados dos testes, os pais pagarão por mais aulas de reforço e cursos preparatórios para os testes. Se os profissionais focalizarem preferivelmente em qualidades “holísticas”, não resolve. É simples: a riqueza sempre confere maior capacidade de dar aos seus filhos a vantagem sobre os filhos de outras pessoas. Se quiséssemos algo parecido com uma “meritocracia”, provavelmente teríamos que começar por instituir um comunismo igualitário completo.

Na realidade, nunca haverá meritocracia, porque nunca haverá igualdade de oportunidades. A principal função do conceito é assegurar às elites que merecem a sua posição na vida. Alivia a “ansiedade da afluência”, esse sentimento incômodo de que podem ser os beneficiários da “loteria do nascimento” arbitrária e não os produtos da sua própria genialidade individual e do seu trabalho árduo.

Há algo de perverso em todo o sistema universitário competitivo. Mas podemos imaginar um mundo diferente. Se a todos fosse garantida uma educação universitária pública gratuita e de alta qualidade, e uma educação escolar pública igualasse a qualidade de uma educação escolar privada, não haveria nada por que competir.

Em vez da farsa do processo de admissão, através da qual os estudantes têm de passar por uma série de arcos desnecessários para se mostrarem dignos de uma boa educação, basta admitir todos aqueles que cumprem um limiar claramente estabelecido para o que é preciso para fazer o curso. Não é como se o sistema atual estivesse selecionando por inteligência ou mérito. A escola que você foi na maior parte nos diz em que classe econômica seus pais estavam. Mas não tem que ser assim.

O poder da mesquinhez raivosa

A Polícia do canudo,  a paranóia dos hambúrgueres e o estado da direita.

Por Paul Krugman

Publicado originalmentes no New York Times em 11 de março de 2019

A coluna de hoje é sobre canudos de plástico, hambúrgueres e detergente para lavar louça. E também Capitão Marvel.

Não, eu não perdi a cabeça, ou pelo menos acho que não. Mas muitas outras pessoas perderam – e sua mesquinhez cheia de raiva é uma força mais importante na América moderna do que nós queremos acreditar.

Meu ponto de partida é um tweet de fim de semana do deputado Devin Nunes da Califórnia, que chefiou o Comitê de Inteligência da Câmara até que a Câmara mudou de mãos após as eleições. Nesse papel, ele basicamente atuou como chefe da blindagem de Donald Trump, fazendo tudo o que podia para evitar qualquer investigação real sobre um possível conluio entre a campanha de Trump e Vladimir Putin.

Mas seu tweet não era sobre isso. Era sobre uma garçonete que, citando a “polícia do canudo”, perguntou a ele e aos amigos que jantavam com ele se eles queriam canudos. “Bem-vindo ao Socialismo na Califórnia! Nunes trovejou.

Se isso parece uma aberração estranha – ela nem negou o canudo, apenas perguntou se ele queria um – você precisa perceber que explosões de raiva sobre coisas aparentemente bobas são extremamente comuns à direita. Por todos os relatos, a maior linha de aplausos na Conferência de Ação Política Conservadora – suscitando cânticos de “U-S-A, U-S-A!” – foi a alegação de que os democratas estão vindo tomar seus hambúrgueres, assim como Stalin. (Eles não vêm, e só para constar, Stalin foi um assassino em massa, mas objetivamente pró-hambúrguer.)

A propósito, este não é um fenômeno novo. Tenho certeza de que os leitores podem apresentar muitos exemplos, e me lembro de um post no blog de 2009 do ativista de direita Erick Erickson que foi praticamente um incitamento à violência: “Em que ponto o povo diz aos políticos para irem para o inferno? Em que ponto eles saem do sofá, marcham até a casa de seu legislador estadual, o puxam para fora, e o espancam até a deixá-lo estrebuchando?

E qual foi a fonte dessa raiva? A observação de que o detergente para máquinas de lavar louça não funciona tão bem sem os fosfatos.

O que é que estas coisas têm em comum? Todas elas envolvem casos em que escolhas individuais impõem custos a outras pessoas. Os canudos de plástico são realmente uma fonte de poluição oceânica. Mesmo que ninguém esteja planejando proibir a carne de vaca, as vacas flatulentas são realmente uma fonte importante do metano, um gás poderoso para o efeito estufa. E os fosfatos contribuem para a proliferação de algas tóxicas.

Mas a raiva parece vir da sugestão de que esses custos impostos aos outros significam que os homens brancos – que parecem ser sempre homens brancos – devem considerar mudar seu comportamento, mesmo que um pouco, no interesse público. O que me leva a Capitã Marvel.

Para aqueles que felizmente desconhecem a questão, o último filme de super-herói apresenta uma protagonista feminina, e a atriz que a interpreta expressou algumas opiniões levemente feministas. Então?

Bem, para um número significativo de homens tudo isso é aparentemente uma ameaça inconcebível. Hordas inundaram sites da internet como rottentomatoes.com com críticas negativas antes da estréia do filme, ou seja, antes mesmo que eles pudessem vê-lo; YouTube cheio de vídeos de ataque e previsões de que o filme seria um fracasso desastroso.

A fúria contra a Marvel reconhecidamente desenhou a mesma mesquinhez patológica da raiva do canudo e da raiva do hambúrguer. Acontece que o filme parece ser um grande sucesso e está recebendo avaliações favoráveis do público. Isso mostra que os homens afetados por essa síndrome são uma minoria bastante pequena.

Mas não é uma minoria sem influência. Nunes esteve, por um tempo, entre os políticos mais importantes de Washington. O CPAC define a agenda do partido que controla a Casa Branca e o Senado. As falas raivosas, recentemente reveladas, de Tucker Carlson da Fox News poderiam ter vindo direto de um desses malucos bizarros anti-Brie Larson.

A questão é que a raiva demente é um fator significativo na vida política americana moderna – e pertence, esmagadoramente, a um lado. Toda essa conversa sobre “flocos de neve” liberais é uma projeção; se você realmente quer ver as pessoas serem levadas à loucura por pequenos insultos e detalhes insignificantes, você geralmente as encontrará à direita. Também não se trata apenas de racismo e misoginia. Embora esses sejam grandes componentes do fenômeno, não vejo a conexão óbvia com a paranóia dos hambúrgueres.

Só para ser claro: para parafrasear John Stuart Mill, eu não estou dizendo que a maioria dos conservadores estão cheios de raiva por coisas pequenas. O que estou dizendo em vez disso é que a maioria dos que estão cheios de tal raiva são conservadores, e vem deles grande parte da energia do movimento.

 

 

 

Os carros estão nos matando.

Publicado originalmente no Guardian

man riding bicycle on city street
Photo by Snapwire on Pexels.com

Por George Monbiot

É a gota d’água. Estacionado em frente ao hospital está um microônibus com o motor ligado. O motorista está brincando no celular. A fumaça entra direto no hall. Eu bato na janela dele e peço que desligue o motor. Ele faz isso, com um muxoxo. Então eu percebo que ele está usando um uniforme do serviço de saúde. Eu ando pelo hall, desço um corredor e entro no departamento de oncologia (não pelo câncer dessa vez, mas para falar de cirurgia reconstrutiva). Olho em volta da enorme sala de espera e me pergunto quantas pessoas aqui sentadas podem estar doentes como conseqüência da poluição atmosférica. Penso em pessoas de outros departamentos: crianças com ataques de asma, pacientes sendo tratados por acidentes de trânsito, ou sofrendo de uma vida inteira de inatividade, pois as rodas substituíram seus pés. E fico impressionado com a incrível variedade de maneiras pelas quais os carros arruinaram nossas vidas.

Vamos abandonar esta experiência desastrosa, reconhecer que esta tecnologia do século XIX está agora causando mais danos do que benefícios e planejar a saída. Vamos estabelecer uma meta para reduzir a utilização de automóveis em 90% ao longo da próxima década.

Sim, o automóvel continua a ser útil – para algumas pessoas é essencial. Seria um bom servo. Mas tornou-se nosso mestre e estraga tudo em que toca. Agora nos apresenta uma série de problemas que exigem uma resposta emergencial.

um desses problemas é comum em todos os hospitais. A poluição agora mata três vezes mais pessoas em todo o mundo do que a AIDS, a tuberculose e a malária juntas. Lembrem-se das afirmações feitas no início deste século, ruidosamente defendidas pela imprensa bilionária: que o dinheiro públicos seria mais bem gastos na prevenção das doenças transmissíveis do que na prevenção da ruptura climática? Acontece que os dividendos para a saúde decorrentes da eliminação progressiva dos combustíveis fósseis seriam provavelmente muito maiores. (É claro que nada nos impediu de gastar dinheiro em ambos: era um falso dilema.) A queima de combustíveis fósseis, de acordo com um artigo recente, é agora “a ameaça mais significativa do mundo à saúde das crianças”.

Em outros setores, as emissões de gases de efeito estufa caíram drasticamente. Mas as emissões dos transportes no Reino Unido diminuíram apenas 2% desde 1990. A meta juridicamente vinculativa do governo é uma redução de 80% até 2050, embora mesmo isso, segundo a ciência agora nos diz, seja irremediavelmente inadequado. Os transportes, principalmente devido à nossa obsessão com o automóvel particular, são agora o principal factor que nos leva à ruptura climática em muitas nações.

O número de pessoas mortas nas estradas estava diminuindo constantemente no Reino Unido até 2010, altura em que o declínio parou subitamente. Porquê? Porque, enquanto menos condutores e passageiros morrem, o número de pedestres mortos aumentou 11%. Nos EUA, é ainda pior: um aumento de 51% na taxa anual de mortalidade de pedestres desde 2009. Parece haver duas razões: motoristas distraídos por seus telefones celulares e uma mudança de carros comuns para veículos utilitários esportivos. Como os SUVs são mais altos e mais pesados, eles são mais propensos a matar as pessoas que atingem. Dirigir um SUV em uma área urbana é um ato anti-social.

Há também efeitos mais sutis e penetrantes. O tráfego silencia a comunidade, já que o barulho, o perigo e a poluição nas ruas movimentadas levam as pessoas para dentro de casa. Os lugares onde as crianças podem brincar e os adultos podem sentar e conversar são reservados para o estacionamento. O ruído do motor, uma grande mas pouco reconhecida causa de estresse e doença, enche nossas vidas. Quando nos empurramos para garantir nosso espaço nas ruas, quando xingamos e expressamos nossa ira com gestos para outros motoristas, pedestres e ciclistas, quando reclamamos sobre limites de velocidade e moderação do tráfego, os carros nos mudam, aumentando nosso senso de ameaça e competição, nos afastando uns dos outros.

As novas estradas cortam as zonas rurais, dissipando a paz, criando uma penumbra de ruído, poluição e feiúra. Os seus efeitos propagam-se por muitos quilômetros. A deposição de nitrogênio reativo dos escapamentos dos automóveis (entre outros fatores) altera os sistemas de vida, mesmo das regiões mais remotas. Na Snowdonia, ela acontece à taxa de 24 kg por hectare por ano, alterando radicalmente a vegetação local. As guerras são travadas para manter baixos os custos do combustível: centenas de milhares de pessoas morreram no Iraque, em parte por este motivo. A terra é dilacerada pela a mineração necessária para fabricar carros e os poços de petróleo necessários para os alimentar, e envenenada pelos derrames e rejeitos.

Uma mudança para carros eléctricos aborda apenas algumas destas questões. Belas paisagens já estão sendo destruídos por uma corrida pelos recursos para veículos elétricos. A mineração de lítio, por exemplo, está agora envenenando os rios e esgotando as águas subterrâneas do Tibete à Bolívia. Continuam a exigir um enorme dispêndio de energia e de espaço. Continuam a precisar de pneus, cuja fabricação e eliminação (os pneus são complexos demais para serem reciclados) é um enorme flagelo ambiental.

Acreditamos que os automóveis têm a ver com liberdade de escolha. Mas todos os aspectos deste assalto às nossas vidas tem o apoio do planejamento estatal e dependem de subsídios. As estradas são construídas para acomodar o tráfego projetado, que então cresce para preencher a nova capacidade. As ruas são modeladas para maximizar o fluxo de veículos. Pedestres e ciclistas são espremidos pelos planejadores em espaços estreitos e muitas vezes perigosos – os pensamentos posteriores do design urbano. Se pagássemos pelo estacionamento residencial nas ruas a preços de mercado para terrenos, alugar os 12m2 necessários para um carro custaria cerca de £3.000 por ano nas partes mais ricas da Grã-Bretanha. O caos em nossas estradas é um caos planejado.
As estradas são construídas para acomodar o tráfego projetado, que então cresce para preencher a nova capacidade. As ruas são modeladas para maximizar o fluxo de veículos. Pedestres e ciclistas são espremidos pelos planejadores em espaços estreitos e muitas vezes perigosos – os pensamentos posteriores do design urbano. Se pagássemos pelo estacionamento “residencial” nas ruas a preços de mercado para terrenos, alugar os 12m2 necessários para um carro custaria cerca de £3.000 por ano nas zonas mais ricas da Grã-Bretanha. O caos em nossas estradas é um caos planejado.

O transporte deve ser planejado, mas com objetivos totalmente diferentes: maximizar seus benefícios sociais e minimizar os danos. Isto significa uma mudança generalizada para o transporte coletivo elétrico, vias seguras e separadas para bicicletas e calçadas largas, acompanhada de uma restrição das condições que permitem que os automóveis se passem por cima das nossas vidas. Em alguns lugares, e para alguns fins, a utilização de automóveis é inevitável. Mas na grande maioria das viagens podem ser facilmente substituídas, como se pode ver em Amesterdam, Pontevedra e Copenhagen. Podíamos praticamente eliminá-los das nossas cidades.

Nesta era de múltiplas emergências – caos climático, poluição, alienação social – devemos lembrar que as tecnologias existem para nos servir, não para nos dominar. É tempo de tirar o carro das nossas vidas.

 

27 anos é um tempão

As previsões mais otimistas não nos davam muitos anos juntos. Já se passaram 27, e tamos aí. Perfeito? Nem de longe. montes de obstáculos e dificuldades e diferenças. Mas durou até aqui.

Tenho mesmo que dar crédito a ela, que aturou minhas esquisitices, minhas manias, meus defeitos, a cabeça dura… nem minha mãe me aturou tão profundamente.

E seguimos assim, até quando der.

Engraçado a união oficial ter se concretizado num dia da independência. Na igreja do lado da avenida em que acontecia o desfile. “saia da parada e venha ver o casório”.

Não temos nenhuma lembraça do dia: nem fotos nem vídeos nem nada. Sei que tem gente que filmou, mas sabe lá onde foi parar. Entretanto, estavam lá na igreja as pessoas que tinham alguma importância pra gente. Não eram muitos, a igreja, tão grande, meio vazia. Não eram muitos, mas todos continuam tendo importância na nossa vida e um lugarzinho nos nossos corações. A lembrança que importa está na nossa memória e na daqueles que estavam lá no dia.

Aquele dia, apesar de ser um marco, foi tão somente uma cerimônia. Tudo que importava na união de fato já estava acontecendo. E continua acontecendo até hoje. e aqueles que estavam lá continuam testemunhas disso.

Obrigado, Alessandra. Obrigado amigos. Minha história seria outra sem vocês.

A tolerância na cidade que “dorme com as galinhas”

Uma discussão quase que permanente no DF tem sido o incômodo causado aos moradores pelo barulho gerado por bares e restaurantes.
Este artigo publicado no Metrópole vem lamentar o fim da vida noturna no DF, a aponta, entre outros fatores, a falta de tolerância por parte dos moradores incomodados.
Tenho insistido que a tolerância não se aplica à situação. É sensato cobrar tolerância ao barulho de sirenes de veículos oficiais em situação de emergência: têm um motivo justo e duram 20 segundos, um minuto talvez, quando passam por onde a pessoa está; é sensato cobrar tolerância a um evento sazonal (eventos em escolas, festas juninas, festas de natal e ano novo, blocos de carnaval…) que promove a cultura local, integra as pessoas e acontece um dia, dois, no máximo cinco dias por ano. Por outro lado, exigir que se tolere o funcionamento de um estabelecimento que priva o morador de conversar com a família, assistir TV, escutar a música de sua escolha, estudar, descansar ou dormir, seis dias por semana, cinquenta e duas semanas por ano não é razoável.
É comum ver no DF os bares e restaurantes instalados em áreas predominantemente residenciais. É comum ver que se instalam em imóveis com área interna muito pequena e acomodam, por vezes, mais de uma centena de clientes numa varanda, numa área externa, nas calçadas. A conversa de bar é geralmente animada, as pessoas falam alto, às vezes MUITO alto, e um ambiente aberto onde ocorre essa atividade não pode ser compatível com o funcionamento em área residencial. Como se não bastasse, muitos desses estabelecimentos usam esse tipo de instalação para apresentar música, ao vivo ao “mecânica”, exibir eventos esportivos em telões, oferecer espaço para comemorações… A rigor, um estudo de impacto ambiental deveria ser feito antes da instalação do estabelecimento, ao menos nas áreas de ocupação restrita.
Nas redes sociais sempre que aparece alguma manifestação dos incomodados, logo surge o já tradicional “quer tranqüilidade vivendo em metrópole?” ou “vá morar no mato, se quiser sossego”. É preciso lembrar que a vida em metrópole é regida por uma série de regras, muitas delas com força de lei, que limitam o incômodo que pode ser gerado por quem quer que seja. O zoneamento No DF, a lei 4092/2008, chamada popularmente de “lei do silêncio” limita o volume de ruído que pode vazar do estabeleciementos em 55dB até as 22h e 50dB após esse horário. Entretanto, o que se mede facilmente é o ruído gerado chegar a 70dB a cem metros de distância do estabelecimento. E, por ser uma escala logarítmica, o acréscimo de 20dB na pressão sonora demanda um incremento de 10x a energia sonora. Literamente 10x mais barulho.
Adquirir um imóvel é um evento único na vida, para a maioria do brasileiros, envolve muito sacrifício e um endividamento por anos. Muitas pessoas, ao buscar o imóvel no qual tenderão a passar o resto de suas vidas, procuram pelas regras impostas pelo zoneamento da cidade, buscando ser protegidos pelas leis que regem a ocupação. Apesar disso, são freqüentemente surpreendidos pela instalação de estabelecimentos comercias ruidosos em áreas L0. Para que isso ocorra é necessárias a aprovação de 4/5 dos moradores que vivem num raio de 50m do estabelecimento, mas esses pedidos de autorização raramente descrevem que o estabelecimento acomodará uma centena de clientes em área aberta, que exibirá jogos de futebol todas as quartas ou quintas à noite, que oferecerá música ao vivo… e, uma vez instalados, desrespeitam todos os limites e nunca são tocados pelos órgãos fiscalizadores, que só dizem nada poder fazer. Não é difícil encontrar prédios próximos a este tipo de estabelecimento com muitos apartamentos à venda, por parte dos moradores que desistiram. E aí vem o próximo problema: a desvalorização do imóvel. Qualquer comprador que visitar o local quando os estabelecimentos estiverem funcionando, desistirá da compra; menos compradores interessados, reduzir o preço passa a ser a única alternativa para gerar o interesse.
É louvável que haja alguém preocupado com a decadência da vida noturna no DF, mas é preciso ver o que realmente causa o incômodo: são os estabelecimentos que procuram áreas residenciais para realizar atividades ruidosas e incômodas, são os estabelecimentos que se negam a ter uma estrutura apropriada para prestar o serviço pretendido, visando apenas aumentar a lucratividade. Por que não exigir que respeitem o que está disposto nas leis, por que não fomentar o instalação desse tipo de estabelecimento em áreas comerciais, em áreas distantes das residências? Imaginem se a área abandonada próxima ao Jóquei fosse transformada em um bairro “gastronômico”, como a SantaFelicidade de Curitiba? Imagino que há várias idéias que poderiam ser colocadas em prática para resolver o problema de forma que a diversão de uns e o lucro de outros não dependesse necessáriamento do prejuízo a outros tantos.
Em tempo: as galinhas dormem cedo, mas são elas que põem os ovos…

Defendo, depois surto…

E com essa “crise” pelo preço dos combustíveis, vejo incontáveis cidadão indigndos com a sobremajoração aplicada pelos postos. “Absurdo”, “tinham que ser presos”. Entretanto, isso é exatamente o que muitos vêm defendendo; o livre mercado. As pessoas, em pânico, correram para os postos para encher os tanques. A procura aumentou estratosféricamente. O vendedor, que tem a liberdade de vender o produto pelo preço que quiser, jogou lá para cima. Você pagou? Então é porque concordou com o preço. Na lógica do mercado, os preços baixam quando a relação oferta/procura se alterar. Então, não abasteça, deixe o carro em casa e force a baixa do preço. “Ah, mas não tem jeito…”; não? então submeta-se ao mercado que você tanto defende.

A zona de conforto.

A empresa aloca o empregado em um setor específico. Chegando lá o cara encontra muita coisa errada, o mecanismo todo engripado, andando devagar, muita coisa até parada. Aí ele analisa os problemas, começa a desengraçar as engrenagens. A coisa começa a andar, a princípio devagarinho, pega momento e vai. Ele azeita o mecanismo, com cuidado pra não usar óleo em excesso. O desempenho vai melhorando, os serviços vão se resolvendo.

Aparecem novas necessidades que ele vai encaixando na máquina. Mesmo com as novas necessidades, a coisa continua fluindo. O setor que era problemático fica invisível: como o serviço flui, ninguém nota sua existência, só vêem suas necessidades plenamente supridas. A máquina entra em velocidade de cruzeiro.

Repentinamente a empresa vem e chama o cara: “vamos te apresentar um novo desafio”. Alguém assume o posto e ele é colocado em outro lugar problemático.

É aparentemente mandatório no mundo corporativo não permitir que seu empregados que demonstram alguma eficiência vivam em uma “zona de conforto”, não permitir que ele desfrute do resultado do trabalho que lhe arrancou o couro por um período. Parece imperativo que ele esteja sempre em processo de esfolamento.

Mas quanto custa isso para a empresa? Quanto custa ficar fazendo o cara que se especializou em um processo específico, e o está mantendo em funcionamento pleno, ficar saltando de lá para cá?

Depois de um tempo, o cara começa a se sentir um otário, principalmente quando vê que o setor que ele deixou começa a não funcionar bem. Muitas vezes esse sentimento chega a afetar o ânimo, até mesmo a saúde do empregado. E ele só desiste.

Pela freqüência com que vejo acontecer, me parece uma característica do mundo corporativo. Uma das que me fazem perder a crença…

A convicção…

Publiquei ontem, num grupo do qual faço parte, uma microcrônica que escrevi há um tempo, sobre um cara que vai comprar pão francês e é levado pela situação a copra pão de forma. Basicamente um cara que encontrou um alternativa pacífica para enfrentar uma dificuldade banal.

Imediatamente sugiram comentário de como minha vida devia ser miserável, de que eu já estava de mal humor às seis da manhã, de que eu achava que as pessoas não tinham direito de escolher o pão que vão comprar.

Coloquei um comentário sobre os exemplos de disfunção cognitiva ali expressos. Não havia nada no texto falando em mau-humor (pelo contrário, o texto é até bem humorado), em cerceamento do direito de quem quer que seja. Citei que estes eram exemplos de “deficiência cognitiva”, uma vez que as pessoas estava usando argumentos que nada tinham a ver com o texto para defender o que tinham entendido.

Entra o cidadão dizendo que meu post era ofensivo, uma vez que chamava os comentaristas de burros. Retruco que não havia chamado ninguém de burro, mas que vários desse comentários críticos baseavam a compreensão (cognição) em fatores que não estavam no texto e que deviam refletir o estado de espírito dos “comentantes”.

Não satisfeito o colega de grupo insistiu que era uma ofensa, que estava chamando os autores dos comentários de “deficientes”. Tentei de novo, agora já auxiliado por mais alguns “comentantes”, explicar que não os estava chamando ninguém de “deficiente”, mas que o estado de espírito em que se encontravam no momento estava prejudicando a capacidade de interpretar o que estava no texto. Só serviu para que o colega passasse a criticar alguns dos termos que eu estava usando (como “inferência” que, na opinião dele, era um sinal claro de esnobismo).

Está muito difícil conviver com esse tipo de coisa. Esse tipo de gente que só se preocupa em negativizar e se opor a qualquer coisa que apareça em qualquer lugar, em criticar com base em elementos externos ao assunto em pauta. Se sentem os donos da verdade, decretam que isso é assim e mesmo que se mostre e demonstre que nada aquilo tem qualquer relação com o objeto da discussão, insistem defendendo o que pensam.

Ou consertamos isso urgentemente, ou não conseguiremos evoluir como humanidade. Aliás, acho que já avançamos mais do que é suportável no retrocesso.

A microcrônica está aqui.

Estórias da terceirização

M era recepcionista em uma grande empresa. Trabalhou lá por mais de vinte anos. Sempre foi extremamente eficiente e simpática. Sabia tudo que era necessário para orientar quem chegava na empresa: quem era quem, quem cuidava de quê, ramais, salas, o escambau.
M trabalhou durante vinte anos para essa empresa através de empresas contratadas. A cada dois anos, vencia o contrato e ela era recontratada pela outra empresa que vencia a concorrência. Nunca criou vínculo empregatício duradouro.
Finalmente chegou o dia em que o contrato acabou e, no novo, a grande empresa pediu um número menor de recepcionistas. M não foi recontratada. Já perto dos 50 anos, não pode competir no parâmetro da nova empresa contratada, que preferiu as recepcionistas bonitinhas.
M foi demitida, recebeu todos os direitos garantidos pela lei para um contrato de trabalho que se estendeu por dois anos. E só.
Seis meses depois, ainda desempregada, teve que aceitar o que lhe sobrou: um emprego de faxineira em uma empresa de limpeza, para atender um contrato com aquela mesma grande empresa.
Hoje, com toda a competência e experiência que adquiriu nos vinte anos atendendo aquela grande empresa, M lava banheiros. E vai terminar ali sua vida profissional, se tudo der certo.

O Neoliberalismo despertou o pior em todos nós, de Paul Verhaeghe

Tendemos a perceber nossas identidades como estáveis e fortemente apartadas de forças externas. Mas, após décadas de pesquisa e prática terapêutica, estou convencido de que as mudanças econômicas estão afetando profundamente, não apenas os nossos valores, como nossas personalidades. Trinta anos de neoliberalismo, forças do livre mercado e privatizações cobram seu preço, quando a pressão incessante pelo sucesso se tornou a norma. Se você assumir uma postura cética ao ler esta artigo, vou colocar de maneira simples: o neoliberalismo meritocrático favorece certas características de personalidade em detrimento de outras.
Há certas características ideais determinantes pra se ter uma carreira hoje em dia. A primeira é ser articulado, com o objetivo de conquistar tantas pessoas quanto possível. A relação pode ser superficial mas, a partir do momento que isso se aplica a quase toda interação humana na atualidade, não tem tanta importância.
É importante ser capaz de divulgar suas habilidades tanto quanto for possível — você conhece muita gente, tem muita experiência e recentemente completou um projeto relevante. Mais tarde, todos perceberão que era uma grande lorota, mas o fato de todos terem sido inicialmente ludibriados aponta para outra característica da personalidade: você pode mentir convincentemente e se sentir minimamente culpado. Por isso, você nunca assume responsabilidade pelo seu próprio comportamento.
Mais do que isso, você é flexível e impulsivo, sempre em busca de novos estímulos e desafios. Na prática, isto leva a um comportamento de risco, mas não será você que terá que limpar a sujeira depois. A fonte de inspiração para esta lista? O checklist da psicopatia, de Robert Hare, o maior especialista no assunto da atualidade.
Esta descrição, obviamente, é uma caricatura levada ao extremo. Ainda assim, a crise financeira ilustra em um nível macrossocial (nos conflitos entre países da Eurozona, por exemplo), o que a meritocracia neoliberal causa nas pessoas. A solidariedade se torna um luxo caríssimo e abre espaço para alianças temporárias, a prioridade sendo sempre lucrar mais com a situação que seus competidores. Os laços sociais com seus colegas se enfraquecem, assim como os laços emocionais com sua empresa ou organização.
Bullying era coisa de escola; agora é uma característica comum do espaço de trabalho. Este é um sintoma típico dos impotentes descarregando suas frustrações sobre os mais fracos — na psicologia isto é conhecido como “agressão deslocada”. Há um sentimento de medo oculto, da ansiedade pelo desempenho a um medo social mais amplo de ser ameaçado pelo próximo.
Avaliações constantes do desempenho no trabalho causam um declínio na autonomia e uma dependência crescente de normas externas em constante alteração. Isto resulta no que o Sociólogo Richard Sennet corretamente chamou de “Infantilização dos trabalhadores”. Adultos apresentando surtos de temperamento e com ciúmes de trivialidades (“por quê ela ganhou uma cadeira nova e eu não?”), contando “mentirinhas”, enganando, apreciando o fracasso de outros e cultivando sentimentos imaturos de vingança. Estas são conseqüências de um sistema que impede o pensamento independente e que falha em tratar os empregados como adultos.
Mais importante, entretanto, é o dano profundo à autoestima das pessoas.
A autoestima depende profundamente do reconhecimento que recebemos do outro, como já demonstraram pensadores como Hegel e Lacan. Sennett chega a uma conclusão semelhante quando percebe que a questão principal para os trabalhadores nos dias de hoje é “Quem precisa de mim?” Para muitos, a resposta é: ninguém.
Nossa sociedade proclama incessantemente que qualquer um pode vencer, desde que se esforce para isso, reforçando privilégios e impondo uma pressão crescente em seus cidadãos desgastados e exaustos. Um número crescente de pessoas fracassam, sentindo-se humilhadas, culpadas e envergonhadas. Nos dizem o tempo todo que somos mais livres para escolher o rumo de nossas vidas do que jamais fomos, mas a liberdade de escolher fora da narrativa de sucesso é limitada. Além disso, os que fracassam são taxados como perdedores ou preguiçosos, que se aproveitam dos benefícios sociais.
A meritocracia neoliberal nos quer fazer acreditar que o sucesso depende do esforço e talento individuais, o que significa que a responsabilidade está inteiramente no indivíduo e as autoridades devem dar total liberdade às pessoas para atingirem esse objetivo. Para aqueles que acreditam no conto de fadas do livre arbítrio irrestrito, autogoverno e autoadministração são as mensagens políticas proeminentes, especialmente quando parecem prometer a liberdade. Junto com a idéia do indivíduo aperfeiçoável, a liberdade que imaginamos ter no mundo ocidental é a maior inverdade de nossa era.
O sociólogo Zygmunt Bauman resumiu claramente o paradoxo de nossa era como sendo: “Nunca fui tão livre. Nunca me senti tão impotente”. Somos inegavelmente mais livres do que antes, no sentido que que podemos criticar religiões, nos aproveitarmos da atitude de laissez-faire relacionada ao sexo e apoiar qualquer movimento político que nos agrade. Podemos fazer essas coisas porque elas não tem mais nenhuma relevância — liberdade desse tipo é movida pela indiferença. Por ouro lado, nossas vidas cotidianas se transformaram em uma batalha constante contra uma burocracia que deixaria Kafka de joelhos. Existem regras para tudo, da quantidade de sal no pão ao armazenamento de carne de frangos.
Nossa liberdade presumida está ligada a uma condição central: devemos atingir o sucesso — ou seja, “fazer” algo de nós mesmos. Não é preciso ir longe para encontrar exemplos. Um indivíduo altamente qualificado que coloca a paternidade acima da carreira está pedindo para ser criticado. Alguém com um bom emprego que recusa uma promoção para investir em outras atividades é visto como louco — a não ser que essas outras atividades garantam o sucesso. Uma jovem que pretenda ser uma professora primária é aconselhada pelos pais a perseguir um mestrado em economia — professora primária? O que essa menina tem na cabeça?
Lamentamos constantemente a perda de tradições e valores na nossa cultura. Entretanto nossas tradições e valores são uma parte integral e essencial de nossa identidade. Portanto, não podem ser perdidas, só alteradas. É exatamente o que aconteceu: a mudança econômica resultou na mudança ética e levou a essa mudança na identidade. O atual sistema econômico despertou o pior em todos nós.

Artigo original: https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/sep/29/neoliberalism-economic-system-ethics-personality-psychopathicsthic